Conforme prometido, depois das sugestões de romances que dei na estreia do blog, hoje vou falar um pouquinho do que vem sendo produzido em solo gaúcho em termos de contos. Nas dicas, estão gêneros variados, de distopias quase realistas (por mais paradoxal que isso possa parecer) até contos de terror, passando ainda por narrativas repletas subjetividade, lirismo e, em alguns casos, também humor.
Lançado ainda em 2010, Quero Ser Reginaldo Pujol Filho (Não Editora, 144 páginas), de Reginaldo Pujol Filho, não tem nada de autoficção, apesar do título. Muito pelo contrário: os dez contos que integram a obra emulam, com muito humor – e de forma bem convincente –, o estilo de dez outros escritores. Assim, o leitor acompanha, por exemplo, as aventuras de um homem que, delirante, pensa ser Miguel de Cervantes, enquanto a narrativa adquire um tom mais e mais quixotesco. Há também histórias à la Luiggi Pirandello (com personagens batendo à porta de um escritor); à Rubem Fonseca (com um assassinato, é claro); à Luis Fernando Verissimo (a impressão é de estar no divã do analista de Bagé); à Italo Calvino (impossível não lembrar de E se um viajante numa noite de inverno)... Completam a lista de homenageados Amilcar Bettega (do qual sugiro um livro abaixo), Machado de Assis, Gonçalo Tavares, Mia Couto e Altair Martins (de quem já indiquei um romance) – mas não vou dar mais spoilers, para deixar ao leitor o prazer de identificar de que forma cada autor inspirou Pujol.
Já em A Árvore que Falava Aramaico (Zouk, 176 páginas), o escritor José Francisco Botelho demonstra um estilo bem próprio. O autor chega a criar uma cidadezinha fictícia, Mirador, cenário de várias das histórias, e pontua as páginas com um vocabulário que mescla expressões típicas do Rio Grande do Sul a uma erudição de grande leitor (e escritor). Assim como a linguagem, rica e fluida, as personagens são cinzeladas com esmero, mostrando-se quase vivas, e passam por situações as mais inusitadas, como um menino que se vê em meio ao que pensa ser o fim do mundo ou um homem cujos irmãos teriam se metamorfoseados em ratos. Tem ainda o primo trambiqueiro que diz conversar (em aramaico) com as árvores, o garoto que acompanha o pai pescador em uma estranha tarefa noturna, homens que podem ser outros homes e não eles mesmos, peões desconfiados, seres assustadores, vozes misteriosas, narrativas circulares e muito mais. O livro foi lançado em 2011, chegou a finalista do Prêmio Açoriano em 2012 e ganhou reedição em 2014.
Os contos de Fim de Festa (Não Editora, 160 páginas), de Renata Wolff, por sua vez, falam de relacionamentos – mas sem nem um pingo de clichê. São histórias de amores, encontros casuais, frustrações, arrependimentos, desconstrução de preconceitos, desencontros, reencontros... Embora sejam independentes, as histórias são de certa forma interligadas, com personagens secundários em uma reaparecendo como principais em outra, ou mesmo com os textos mostrando diferentes momentos de uma relação. A construção das narrativas é tão bem-feita que o escritor e professor Charles Kiefer as define, na orelha do livro, de “contos-origami”. Lançado em 2015, o livro foi finalista do Prêmio Jabuti em 2016 e, em 2018, foi relançado com a capa que aparece neste post.
Chegando nos livros editados no ano passado, vale a pena conferir os 69 contos de Prosa Pequena, de Amilcar Bettega (Zouk, 208 páginas). Como o próprio nome antecipa, são textos curtos, de uma a três, quatro páginas no máximo – ou o que o autor chama de “instantâneos, narrativas mínimas, fragmentos de coisa nenhuma”. É preciso discordar, entretanto, dessa última definição: podem ser fragmentos, mas eles estão repletos de muita coisa. Repletos, por exemplo, da surpreendente ingenuidade infantil perante as bombas que caem em Sarajevo, durante a guerra de 1992; ou da solidão e da singeleza de um idoso em sua rotina de fim de tarde; ou, ainda, do medo e da confiança que se mesclam na mente de um trapezista nos segundos anteriores ao salto no ar. Os contos, enxutos, passeiam pelos mais variados cenários, tempos e temas, passando por lençóis secando na grama, anotações de um aspirante a escritor, o sol da Andaluzia, um pai que conserta a bicicleta da filha, as manhãs de domingo... São, realmente, instantâneos fixados com palavras por um autor que, com obras anteriores, já recebeu algumas das principais premiações literárias nacionais.
Deixamos os livros individuais e passamos às coletâneas. Uma leitura interessante e que faz refletir é Tudo Soma Zero: Histórias de Outros Futuros (Class, 296 páginas). Com organização de Ana Luiza Rizzo e Cris Vazquez, a antologia reúne contos de 26 escritores e escritoras, os quais imaginam futuros distópicos e muito, muito assustadores – principalmente porque algumas das situações fictícias parecem cada vez menos impossíveis. As tramas incluem patrulha do pensamento, sociedades compostas apenas de homens ou de mulheres, caos nas ruas, obsessões, convívio cada vez menor, realidade manipulada pelas palavras de seus líderes e outros cenários igualmente separados da realidade por um fio muito tênue. A torcida, enquanto se lê, é para que o fio resista, e tais histórias permaneçam apenas no universo da ficção.
Saindo da distopia para o universo do horror, a dica é A Casa Fantástica (Flyve, 300 páginas), com organização de Duda Falcão e Lucas de Lucca. O livro traz 21 contos de diferentes autores, e é fruto de um projeto no qual escritores e artistas visuais de várias cidades reuniram-se em um casarão antigo em Bento Gonçalves, numa noite fria, com um único objetivo: passar doze horas escrevendo. O resultado inclui desde histórias de um terror mais psicológico, beirando o suspense, até narrativas com elementos clássicos do horror, como entidades sobrenaturais e pactos de sangue. Há ainda contos que flertam com a ficção científica e a fantasia.
Essas são as dicas de hoje. Não deixe de conferir também as dicas de romances, dois posts abaixo, e aguarde que em breve falarei também de poesias e crônicas. Ah: se quiser, pode deixar suas sugestões nos comentários!
Muito obrigada, Mari, pela recomendação e pela excelente leitura! Ótimas recomendações. Um beijo com carinho.